Diário da Inês
25 de Abril 1966
Olá Querido Diário.
Peço desculpa por tomar de assalto as tuas linhas, mas preciso de desabafar porque, cada vez mais, se torna difícil saber em quem confiar. Ter a cabeça e o coração cheios de lamúrias e não ter com quem falar torna os dias mais penosos e insuportáveis.
Os estudos vão bem e gosto da matéria, embora me crie algumas dúvidas que surgem da divergência entre o que ouço na escola e o que aprendo em surdina pelos meus pais. Neste momento, mais pelo meu pai do que pela minha mãe que, ultimamente, anda desanimada e descrente. Embora não o diga, acredito que a ida do meu irmão para a guerra seja a principal causa.
Tento animá-la, mas, para ser sincera, também eu começo a perder a crença em Deus. Se Ele fosse justo percebia que o meu irmão está a sofrer numa luta que não é dele. Lembro-me da sua primeira carta enviada de Lourenço Marques após ser enviado pelas forças portuguesas para esta guerra, isto por estar envolvido em atividades associativas na Universidade. Apesar de revoltado, consegui encontrar o seu sorriso meigo na descrição da grandeza da cidade e de como parecia muito mais evoluída do que a metrópole (como será isso possível???). Ao longo do tempo, as cartas se tornam escassas e estão preenchidas de revolta, fúria e uma ausência completa de amor e de esperança. Penso que será isto quando falam em trauma de Guerra. Choro todos os dias por não conseguir falar com ele, nem ter como ajudá-lo ou reconfortá-lo com uma foto das minhas notas que o deixariam tão orgulhoso. Queria muito que ele estivesse aqui para lhe mostrar o isqueiro que a Maria roubou ao pai, por não ter como pagar a licença de uso (de uma forma ou de outra, tudo se paga neste país).
Por ser a única menina na turma, recai em mim todos os holofotes, não por me sentir das mais inteligentes da turma (o que sinto realmente), mas por me fazerem perceber que aquele lugar não me pertence.
Sinto-me tão só no recreio. Os rapazes não falam comigo e isso magoa-me. Principalmente o Rui que sinto que o meu amor por ele é correspondido, mas não demonstrado e culpo os seus pais por isso. Não querem o seu filho metido com uma filha de um “comunista ingrato” (tenho tanto medo que levem o meu pai preso).
No sábado, o tempo esteva bom e consegui ir brincar para a rua onde conheci alguns meninos de etnia cigana. Consegui aprender um pouco sobre os seus costumes e percebi que temos as mesmas brincadeiras e sorrisos. Domingo, acordei cedo para ir brincar com eles, mas já tinham ido embora por ter terminado o seu tempo de estadia, por isso fui passear com o meu pai pelo centro.
O passeio foi muito bom, gosto muito de passear sozinha com o meu pai, apesar de sentir raiva no seu olhar quando não pode ficar a conversar com os amigos que encontra na rua. Conversamos sobre tudo e sem rodeios, onde posso dizer o que penso sobre as maldades do “Botas”, como acho injusto mandarem o meu irmão para a Guerra e como odeio toda a polícia que anda à escuta como beatas da igreja. O meu pai escuta-me sempre sem reclamar e deixa-me libertar toda a minha raiva, acabando a conversa sempre da mesma maneira: com um abraço seguro e meigo, e com o pedido para que não comente nada com ninguém, nem com a Rita (a minha melhor amiga), tudo o que acabara de falar. A minha mãe deixou de nos acompanhar, ultimamente passa a maior parte do tempo a discutir com o meu pai, receando que ele acabe preso e que eu seja enviada para um reformatório. A tristeza dela não a permite desfrutar de um simples passeio pela cidade. Queria tanto que o meu irmão estivesse aqui.
Se Deus existe, sei que o vai trazer de volta.
Não sei se já te contei, mas hoje faço anos, 10 anos. Desculpa a falta de entusiamo, na verdade nem isso me anima. Hoje, o Pedro perguntou ao professor porque temos de começar o dia a rezar o terço e, pela sua ousadia, obteve como resposta 10 reguadas na mão e a obrigação de usar as “orelhas de burro” durante a aula inteira; convidei 12 amigos para virem comer o bolo e todos rejeitaram pelo medo de que os pais têm de algumas conversas; pedi à minha mãe como presente poder faltar à aula da Mocidade Portuguesa, e que ela negou com medo de represálias; pedi uma carta do meu irmão e nada chegou até hoje, ele nunca esteve tanto tempo sem mandar uma carta. Quero formar-me em Direito e poder ajudar quem mais precisa, mas a minha mãe não me deixa e na Mocidade querem incutir-me à força que o meu dever é ser dona de casa e cuidar do marido. Até aceito o marido, mas que seja como o meu pai e não como o Rui que não luta pelo que ama (o seu olhar não engana); quero poder falar alto e em bom som que é um sinal de preconceito e racismo festejar o 10 de junho como o “Dia da Raça”. Talvez o faça durante o cortejo, para o qual nos estamos a preparar e, assim, fazer ver ao comissário nacional que nós mulheres também temos voz e direito a voto.
Hoje, dia 25 de Abril de 1966, peço como prenda de anos razões para sorrir. Quero ser eu a decidir o meu destino, poder exprimir o que mudava na nossa governação, quero conseguir votar e lutar de forma cívica. Quero poder entrar num café com o mesmo respeito que qualquer homem sente e conseguir falar de politica, de amores e desamores e de tudo que achar pertinente, ou apenas porque sim.
Se Deus me estiver a ouvir, que envie o meu irmão e anjinhos e me ajude a concretizar o meu sonho. Ai sim, o dia do meu aniversário será o mais feliz de sempre.
A Inês é uma personagem fictícia que escreve uma página do diário para que que possam perceber a importância do 25 de Abril e o que este momento significa, isto é, mais do uma mera homenagem à conquista da Liberdade. Que liberdade é esta de que se fala? O que abrange esta liberdade?
Aproveitemos a oportunidade que nos deram de ser livres, de sermos curiosos e de perceber a nossa História. Só assim não corremos o risco de ela voltar a repetir-se.
Paulo Khan